A torcida modinha às avessas

Já disse que um dos meus momentos preferidos no estádio se encontra quando subo a escada, entro na arquibancada e vejo o campo. É uma atmosfera única e irresistível que sempre me faz arrepiar. Reparo nada além do campo por um segundo, depois me lembro do universo.

0986f337-9f6f-4d1a-a0dc-1ec2fcbfe73aNeste jogo contra o América fiquei ali na entrada. Não sou só eu besta assim. A maioria tem algum ritual ou entra se sentindo como um modelo estreando na passarela. Estufa o peito e vai. As crianças apenas vão. Aquelas que não estão com as mãos dadas aos pais sempre chegam à frente correndo com aquele sorriso besta de que chegou ao maior playground do mundo.

Neste domingo, ciente da situação do time, decidi ficar no vermelho inferior. Vi que o Cruzeiro havia feito uma campanha de ingressos mais baratos com o Super Notícia que ao final das contas, saía à R$ 21,25 para quem não é sócio.

70098e48-840e-4876-998b-b16fd0989730Há muito tempo não se via um preço tão acessível assim para a torcida (não levando em conta valores de meia entrada). O time na pior fase, com futebol nada convincente, com um técnico que desagrada, precisando de um placar elástico e a diretoria fazendo nada para mudar essa situação. Eu, sinceramente, achava que não passariam de 15 mil pessoas no campo.

Mas naquele setor vi que não importava. Ali estava seu povo para qual foi feito o futebol. Nos sinais da cruz, exclamações, pelos cantos puxados apenas por puxar, pelo brilho dos olhos e tantos, mas tantos amigos que se reencontravam. Tantos idosos que ouvi dizer “a quanto tempo”, tantas crianças que gritaram “olha o tamanho do campo! Vem ver pai!!”, o pai explicava ao filho “como era antes” e a regra da cerveja era conhecida ali para surgir um “estádio chato” para ter assunto para puxar com a segurança enquanto bebia.a6890479-9c49-44ba-9ca1-37723eb45c03 (1)

Na era da rede social, nunca vi tantas fotos tiradas naquela rampa de entrada. O jogo não tinha começado, então podia. Cada hora parava uma família, alguns amigos, poses, poses e poses. A raposa distribuída pelo marketing virava o protetor do sol, o qual dava de cara com quem subia ao palco e, quando o time entrou em campo pra aquecer, aquele rosto de raposa gigante virara escudo de guerra.

Foi uma gritaria danada. Corneta, Fábio e Willian. O que valia era gritar. Estavam ali novamente de perto do seu time. Seu time, mesmo cambaleando, estava ali com teu povo.

a2090a03-663a-49ac-9dac-38f8e9bc8f33E a maioria resistiu ali até o fim. O menininho que comia o tropeiro em que o isopor era quase do seu tamanho parava de mastigar quando o Cruzeiro subia ao ataque. Duas meninas que não passavam dos seus 8 anos puxavam um “vamos vamos Cruzeiro” na velocidade da luz enquanto o resto da torcida vaiava. Era o universo delas que sabia que poderiam ser escutadas e o jogador correria mais, por elas.643d371c-ae71-442f-bd8e-5f5fb8df406e

Reclamamos da torcida “modinha” que só vai no bem bom, agora temos que dar o nome para esses que só puderam ir porque o time precisou (na cara de pau) de se ajoelhar e falar “vocês podem voltar que estamos precisando de ajuda?”. Lembrem-se: Muitos que neste domingo viram o time ser desclassificado não puderam o ver ser campeão há dois anos. Mas contra o América estavam lá, de mãos estendidas puxando o clube pra que ele ficasse de pé. Estes podemos dizer que são nossos queridos “modinhas às avessas” os quais eu realmente gostaria de dizer que é nosso povo.

A classificação? Não veio. Mas eles podem dizer – com orgulho – que tentaram.

Luciana Bois

Precisamos acabar com a torcida organizada

A torcida organizada é muito legal para a partida de futebol. Ela traz a música, as bandeiras, o papel picado, os trapos, enfim, faz a festa e convida os torcedores comuns a torcer junto com ela. É como um maestro para o restante da torcida de um clube de futebol. Além disso, a torcida organizada também acompanha o time fora de casa, apóia em jogos complicados, que o torcedor comum geralmente não pode comparecer. A torcida organizada tem um papel importante quando o assunto é torcer.

Mas a torcida organizada também tem um papel muito importante para o futebol quando o assunto é violência. Ela é a razão da violência no futebol. Ela leva a rivalidade comum entre dois times ao nível máximo e a transforma em ódio. E esse ódio se transforma em brigas, confrontos entre torcedores, que levam a mortes de pessoas. Como aconteceu nesse final de semana na partida entre Palmeiras e Corinthians. Uma pessoa que nada tinha a ver com a situação levou um tiro no coração por conta de uma briga entre torcedores de torcidas organizadas.

No Brasil, somos os recordistas em mortes causadas por futebol. Entre 2010 e 2014 foram 94 torcedores mortos por brigas entre organizadas rivais. E por que? Apenas por torcerem para times diferentes. Mas muitos dizem que os torcedores que fazem isso são marginais, infiltrados, que não torcem de verdade pelo time, só querem brigar. E pode ser verdade, num caso ou outro. Mas a maioria é torcedor sim. Pelo mesmo motivo que disse acima. Eles cantam todas as músicas, hasteiam suas bandeiras, tocam seus instrumentos, jogam papel picado, etc. Quem faz isso tudo não pode ser apenas um “marginal infiltrado”. E não deve ser tratado assim. Ele é um torcedor. Um torcedor que, vez ou outra, briga com torcedores adversários e assassina pessoas. É um torcedor organizado assassino.

Se fosse em qualquer outro local que não o futebol não teria nem conversa. Prende todo mundo. Prisão perpétua. Pena de morte. “Qualquer coisa que tire esse monstro de circulação”, diria a maioria dos brasileiros. Mas como é dentro do futebol o papo é relativizado. São os tais marginais infiltrados. Que assassinam 94 pessoas em 4 anos. Cantando, hasteando bandeiras. Por torcerem por times diferentes. À sangue frio. Jogando papel picado pra cima. Com armas de fogo. Fazendo a festa.

Por culpa da torcida organizada o futebol brasileiro é dividido. A polícia precisa entrar em ação para separar pessoas comuns que vão a um estádio assistir seu time jogar futebol, só porque cada um usa uma camisa diferente. As mesmas pessoas que tem diversos amigos, conhecidos, colegas de trabalho, que torcem por times diferentes. E que conseguem lidar tranquilamente com eles. Mas, por causa do torcedor organizado, o estádio de futebol se tornou um campo de batalha, onde o diferente não é tolerado.

No campeonato de futebol americano nos Estados Unidos, os torcedores de times rivais assistem ao jogo juntos. E funciona. Olha, você não precisa abrir a nova aba e procurar “briga nfl torcedores” para provar o ponto contrário. Eu sei que deve ter um tanto de briga por causa de futebol americano. Mas tente achar mortes no futebol americano. É uma ou outra, e ainda em situações inusitadas (a maioria cai de algum lugar). E por que essa torcida misturada não pode acontecer aqui? Nós temos amigos de outras torcidas, nós conseguimos nos relacionar com essas pessoas no trabalho, em bares, festas, nas ruas, em qualquer lugar… menos no estádio de futebol. O torcedor organizado fez do estádio de futebol um lugar hostil, que transforma todo mundo em inimigo. E conseguiu nos enganar, enganar a polícia, os dirigentes, todo mundo. Fez com que a gente pensasse que a melhor solução fosse a separação. Torcedores escoltados pela polícia, entrando em portões completamente afastados, jogos com torcida única. Tudo porque “é perigoso”. Tudo porque “vai dar confusão”.

A maioria da torcida de futebol não é perigosa. Não arruma confusão. A maioria da torcida de futebol é a gente. Sou eu, você, meu amigo atleticano, sua namorada cruzeirense, seu tio americano. A maioria não quer brigar. Nunca brigou. Não quer matar o rival. A maioria só quer se divertir assistindo a um esporte tão maravilhoso no estádio. Mas tem uma minoria, o torcedor organizado, que quer estragar essa festa, quer brigar, assassinar outras pessoas, e acaba sendo visto e tratado muitas vezes como “o torcedor”. O torcedor que canta, que hasteia bandeira, joga papel picado e também mata outras pessoas.

Nós precisamos acabar com o torcedor organizado. Nenhum de seus benefícios é maior do que uma vida. E eles vêm tirando vidas demais para continuarem a ser relativizados por todo mundo. Precisamos parar com o papo de “marginal infiltrado”. Se é marginal infiltrado vamos acabar com a organização onde ele se infiltra. Por que é tão fácil para uma marginal se infiltrar em uma torcida organizada? Como algo chamado “torcida organizada” abriga tanto marginal infiltrado sem perceber? Pra mim é fácil entender isso. É porque eles não são infiltrados. São marginais e torcedores organizados. Torcedores sim. Torcedores assassinos. Torcedores que sempre serão marginais, sempre serão infiltrados e sempre serão assassinos. Isso se a gente deixar tudo como está.

Muita gente vai dizer que não precisamos disso, que é só prender as pessoas, identificar esses assassinos e deixar eles na cadeia. Levar a pessoa para a delegacia durante todos os jogos do seu time. E sim, eu concordo. Temos que fazer isso mesmo. Mas já é 2016. E isso acontece no Brasil desde sempre. Já poderíamos ter feito isso há muito tempo. E por que não é feito? Porque a polícia tem coisas mais importantes para tratar que futebol. Infelizmente o Brasil é um país violento, crimes ocorrem a todo o momento, e o futebol não é uma prioridade para a polícia. Realmente seria ideal prender todo mundo, mas não podemos ficar esperando que a polícia resolva todos os problemas do futebol. Podemos fazer algo. Podemos acabar com a organização que promove a violência, que divide as torcidas, que assassina as pessoas. E é claro que acabar com a torcida organizada não é garantia nenhuma que o futebol será completamente curado de uma hora para a outra. O processo é complicado. Eles vão continuar se juntando, mesmo sem as camisas, instrumentos e bandeiras. Mas estarão mais fracos, não serão identificados como um grupo, não serão “especiais”. Serão tão desorganizados como todos os outros. E serão uma minoria, que pode ser abafada pelo torcedor que só quer o bem.

Por que precisamos dar regalias e tratar como benéfica uma torcida que tanto mal faz ao futebol? Que trouxe a violência, a separação e a intolerância ao estádio de futebol. Por que eles cantam? Jogam papel picado? Hasteiam bandeiras? Sinceramente, eu prefiro muito mais ficar com uma torcida que não faça nada disso para que não tenhamos mais ninguém morto por causa de futebol no Brasil.

Até algum dia (está complicada a vida para escrever todo dia, infelizmente).